Sobre o que se edita...
Caros amigos,
tomei a liberdade de publicar este post com o comentário do meu amigo Daniel, escritor e designer.
Com a sua permissão,claro.
Para quem não o conhece, é o escritor e foi também o designer do livro "Cotãozinho e os seus irmãos".
Daniel J. Skramesto disse...
Enquanto escritor e designer ocorre-me dizer algumas palavrinhas em relação a isto.
A sensação que me fica da grande maioria dos livros infantis portugueses é que são coxos. Um livro infantil tem de se apoiar em quatro patas para poder avançar em condições. São elas: escritor, ilustrador, editor, designer.
Destes quatro parece-me que quem anda a fazer pior trabalho são os editores porque são eles que têm de coordenar os outros três. Não me parece correcto andar a dizer aos outros como devem fazer o seu trabalho, mas há coisas que são tão óbvias que não sei como podem ser ignoradas. Pelos vistos alguém de fora tem de as dizer...
1 - OS ESCRITORES
- Os textos de autores estrangeiros publicados em Portugal deviam ter traduções e revisões mais cuidadas. Aparecem erros escabrosos e não são poucos.
- Os textos de autores portugueses que são escolhidos para publicação previligiam autores mais antigos, que, em certos casos, estão tão velhos que quase perderam a noção do público para quem escrevem. Continua-se a publicar quem sempre se publicou sem qualquer apreciação crítica.
- Há poucos (bons) autores novos a surgirem: primeiro porque pouca gente escreve para o público infantil; segundo porque os que escrevem são grandemente ignorados pelas editoras; terceiro porque as editoras não se dão ao trabalho de editar o trabalho dos escritores, com isto quero dizer, sentar-se com o escritor e descobrir maneiras de melhorar um texto com potencialidades. Os editores estão à espera da papa feita e querem a obra prima instantânea. Esquecem-se que os diamantes precisam de ser lapidados para poderem brilhar. Por isso é que poucas joias aparecem e quase tudo parece cascalho.
- Devido a esta (se calhar falsa) falta de escritores para o público infantil muitas editoras julgam que basta pedir a um escritor de ficção consagrado um pequeno conto para crianças. Nem sempre daí resultam boas coisas porque, mais uma vez, há falta de comentário crítico por parte dos editores (desta vez acrescida de reverência bacoca pela obra literária do escritor)
2 - OS ILUSTRADORES
- A escolha de ilustradores pelas editoras parece muitas vezes o Padrinho a arranjar biscates para os afilhados. Não lhes parece óbvio que para terem um bom livro é preciso escolher um ilustrador de acordo com o ambiente do texto de modo a que o universo visual e escrito se complementem??? Será exagero meu pensar que muitas vezes os editores não leram o texto do escritor e não conhecem o trabalho do ilustrador que contratam?
- Algumas editoras vêm o ilustrador como o tipo que é contratado para "fazer uns bonecos". Esquecem-se que em livros ilustrados eles são responsáveis por metade (ou mais) do trabalho. Eles também estão a contar uma história.
- Mais uma vez, não há posição crítica dos editores face ao trabalho dos ilustradores. Poucos percebem como é feito o trabalho do ilustrador e não lhes pedem esboços que deveriam ser discutidos com os escritores e designers. A criação de um livro infantil ilustrado tem de ser um trabalho de grupo. Na maioria das vezes o ilustrador é deixado ao abandono, sem noção do que se pretende. Isto resulta frequentemente em escritores insatisfeitos e ilustradores mutilados pelo design.
Aponte-se tambem o comportamento snob de muitos ilustradores que se julgam "artistas" e como tal impremeáveis a críticas, sugestões e comentários. Frequentemente evitam esforçar-se em melhorar o seu trabalho utilizando frases como "isso é contra o meu universo pictórico / a minha sensibilidade cromática", etc... Esquecem-se que o ilustrador serve o livro e usam o livro como uma ocasião para, de facto, fazerem mais alguns dos "seus bonecos".
3 - OS DESIGNERS
- A grande falha dos editores portugueses. Por questões de custo, a maioria das vezes, os livros infantis vão parar a um "gabinete gráfico" onde um estagiário "põe as letras nos livros". Há que perceber que um designer é a pessoa que coordena visualmente TODO o livro. Por isso tem que entrar no processo de produção praticamente ao mesmo tempo que o ilustrador.
Um designer deve ser um Director de Arte e um Consultor Técnico de produção. Um editor NÂO TEM (nem tem de ter) capacidade e competencia para fazer esse trabalho.
- Confiar numa gráfica para a impressão de um trabalho é o mesmo que achar que o drácula pode ser baby-sitter. Compete ao designer ir para a gráfica ver o trabalho a ser impresso porque ele é a pessoa que deve ser responsável pelo total visual do livro precisamente por ter acompanhado todo o processo da sua criação. Prescindir deste trabalho é estar condenado ao fracasso.
4 - OS EDITORES
- A visão crítica que o Editor deve ter sobre o trabalho do escritor, do ilustrador e do designer, para além de ter de ser óbviamente construtiva (vale de alguma coisa estar a fazer críticas destrutivas?!), tem de ser fundamentada. Para isso é preciso que o Editor tenha um conhecimento básico da função que cada uma das partes tem na criação do livro. Isto não é pedir muito - é pedir que façam o trabalho que lhes compete.
- Um editor tem que saber o catálogo que tem e que tipo de catálogo está a criar. A edição de livros é, e deve ser, lucrativa. Um mau livro é mau para toda a gente. Infelizmente, grande parte das editoras editam livros simplesmente porque sim.
- A primeira noção que um editor deve ter é saber O QUE É UM LIVRO. A maioria não sabe, embora viva rodeado deles.
Cada livro editado devia ser motivo de orgulho para o editor. Infelizmente, o que se vê é editoras a escolherem ao acaso o que publicam e a apressarem toda a gente para cumprir prazos ridiculamente apertados - que simplesmente não se justificam porque assim que o livro fica pronto é quase imediatamente esquecido e a promoção (quando existe!) dura pouco mais de um mês.
- Não adianta estar com orçamentos apertados para se editar livros maus (porque feitos à pressa e sem os devidos recursos). Com livros maus ninguém ganha dinheiro. Dinheiro compra tempo e qualidade - qualidade gera lucro. Isto é muito simples, mas parece que ninguém percebe.
.......
É claro que há mais coisas que eu podia dizer, mas provavelmente iria descambar para a crueldade. Hoje fico-me por aqui.
tomei a liberdade de publicar este post com o comentário do meu amigo Daniel, escritor e designer.
Com a sua permissão,claro.
Para quem não o conhece, é o escritor e foi também o designer do livro "Cotãozinho e os seus irmãos".
Daniel J. Skramesto disse...
Enquanto escritor e designer ocorre-me dizer algumas palavrinhas em relação a isto.
A sensação que me fica da grande maioria dos livros infantis portugueses é que são coxos. Um livro infantil tem de se apoiar em quatro patas para poder avançar em condições. São elas: escritor, ilustrador, editor, designer.
Destes quatro parece-me que quem anda a fazer pior trabalho são os editores porque são eles que têm de coordenar os outros três. Não me parece correcto andar a dizer aos outros como devem fazer o seu trabalho, mas há coisas que são tão óbvias que não sei como podem ser ignoradas. Pelos vistos alguém de fora tem de as dizer...
1 - OS ESCRITORES
- Os textos de autores estrangeiros publicados em Portugal deviam ter traduções e revisões mais cuidadas. Aparecem erros escabrosos e não são poucos.
- Os textos de autores portugueses que são escolhidos para publicação previligiam autores mais antigos, que, em certos casos, estão tão velhos que quase perderam a noção do público para quem escrevem. Continua-se a publicar quem sempre se publicou sem qualquer apreciação crítica.
- Há poucos (bons) autores novos a surgirem: primeiro porque pouca gente escreve para o público infantil; segundo porque os que escrevem são grandemente ignorados pelas editoras; terceiro porque as editoras não se dão ao trabalho de editar o trabalho dos escritores, com isto quero dizer, sentar-se com o escritor e descobrir maneiras de melhorar um texto com potencialidades. Os editores estão à espera da papa feita e querem a obra prima instantânea. Esquecem-se que os diamantes precisam de ser lapidados para poderem brilhar. Por isso é que poucas joias aparecem e quase tudo parece cascalho.
- Devido a esta (se calhar falsa) falta de escritores para o público infantil muitas editoras julgam que basta pedir a um escritor de ficção consagrado um pequeno conto para crianças. Nem sempre daí resultam boas coisas porque, mais uma vez, há falta de comentário crítico por parte dos editores (desta vez acrescida de reverência bacoca pela obra literária do escritor)
2 - OS ILUSTRADORES
- A escolha de ilustradores pelas editoras parece muitas vezes o Padrinho a arranjar biscates para os afilhados. Não lhes parece óbvio que para terem um bom livro é preciso escolher um ilustrador de acordo com o ambiente do texto de modo a que o universo visual e escrito se complementem??? Será exagero meu pensar que muitas vezes os editores não leram o texto do escritor e não conhecem o trabalho do ilustrador que contratam?
- Algumas editoras vêm o ilustrador como o tipo que é contratado para "fazer uns bonecos". Esquecem-se que em livros ilustrados eles são responsáveis por metade (ou mais) do trabalho. Eles também estão a contar uma história.
- Mais uma vez, não há posição crítica dos editores face ao trabalho dos ilustradores. Poucos percebem como é feito o trabalho do ilustrador e não lhes pedem esboços que deveriam ser discutidos com os escritores e designers. A criação de um livro infantil ilustrado tem de ser um trabalho de grupo. Na maioria das vezes o ilustrador é deixado ao abandono, sem noção do que se pretende. Isto resulta frequentemente em escritores insatisfeitos e ilustradores mutilados pelo design.
Aponte-se tambem o comportamento snob de muitos ilustradores que se julgam "artistas" e como tal impremeáveis a críticas, sugestões e comentários. Frequentemente evitam esforçar-se em melhorar o seu trabalho utilizando frases como "isso é contra o meu universo pictórico / a minha sensibilidade cromática", etc... Esquecem-se que o ilustrador serve o livro e usam o livro como uma ocasião para, de facto, fazerem mais alguns dos "seus bonecos".
3 - OS DESIGNERS
- A grande falha dos editores portugueses. Por questões de custo, a maioria das vezes, os livros infantis vão parar a um "gabinete gráfico" onde um estagiário "põe as letras nos livros". Há que perceber que um designer é a pessoa que coordena visualmente TODO o livro. Por isso tem que entrar no processo de produção praticamente ao mesmo tempo que o ilustrador.
Um designer deve ser um Director de Arte e um Consultor Técnico de produção. Um editor NÂO TEM (nem tem de ter) capacidade e competencia para fazer esse trabalho.
- Confiar numa gráfica para a impressão de um trabalho é o mesmo que achar que o drácula pode ser baby-sitter. Compete ao designer ir para a gráfica ver o trabalho a ser impresso porque ele é a pessoa que deve ser responsável pelo total visual do livro precisamente por ter acompanhado todo o processo da sua criação. Prescindir deste trabalho é estar condenado ao fracasso.
4 - OS EDITORES
- A visão crítica que o Editor deve ter sobre o trabalho do escritor, do ilustrador e do designer, para além de ter de ser óbviamente construtiva (vale de alguma coisa estar a fazer críticas destrutivas?!), tem de ser fundamentada. Para isso é preciso que o Editor tenha um conhecimento básico da função que cada uma das partes tem na criação do livro. Isto não é pedir muito - é pedir que façam o trabalho que lhes compete.
- Um editor tem que saber o catálogo que tem e que tipo de catálogo está a criar. A edição de livros é, e deve ser, lucrativa. Um mau livro é mau para toda a gente. Infelizmente, grande parte das editoras editam livros simplesmente porque sim.
- A primeira noção que um editor deve ter é saber O QUE É UM LIVRO. A maioria não sabe, embora viva rodeado deles.
Cada livro editado devia ser motivo de orgulho para o editor. Infelizmente, o que se vê é editoras a escolherem ao acaso o que publicam e a apressarem toda a gente para cumprir prazos ridiculamente apertados - que simplesmente não se justificam porque assim que o livro fica pronto é quase imediatamente esquecido e a promoção (quando existe!) dura pouco mais de um mês.
- Não adianta estar com orçamentos apertados para se editar livros maus (porque feitos à pressa e sem os devidos recursos). Com livros maus ninguém ganha dinheiro. Dinheiro compra tempo e qualidade - qualidade gera lucro. Isto é muito simples, mas parece que ninguém percebe.
.......
É claro que há mais coisas que eu podia dizer, mas provavelmente iria descambar para a crueldade. Hoje fico-me por aqui.
6 Comments:
Olá Carla!
Entrei no vosso "sindicato". Concordo com algumas coisas. Outras são exageradas.Força! Ler textos com letra azul é que não me ajuda nada.
António Mota
A quinta pata:
Como livreira sublinho tudo o que diz o Daniel. Na recepção, no quase fim da linha, a minha leitura é a mesma que a sua.
E não haverá mais gente a pensar assim?? Então como raio é que não pertencem à secção portuguesa do IBBY? E porque é que não somos nós todos(os que assim pensamos e os que estamos de facto com a LIJ e a ilustração em mãos) que estamos presentes no próximo forum internacional (um qualquer) onde se discuta também o nosso panorama editorial? Num qualquer congresso ibérico?
Dizer mal também faz falta. Quebrar esta unanimidade falsa em que vivemos. Quem quer dizer que quer viver entre livros de modo distinto tem que elevar a voz e encontrar outros com quem criar música.
Sónia Sequeira
sonia@onaviodeespelhos.com
Sónia,muito obrigada pelo seu comentário.Gostei muito.Se me permitir gostaria de o publicar em POST.beijinhos Carla
Pela qualidade do todo!
E o Daniel articula ( muitíssimo bem ) as várias peças do jogo.
Sublinho no comentário do Daniel a urgência de edição de verdade na literatura infantil: edição literária,textual e edição gráfica.
Muito pertinente porque (praticamente) inexistentee em Portugal. Parece-me ser este o (não)começo dos começos. Editores específicos ( ou não ) que trabalhem em conjunto com o escritor e com ilustrador e capazes sim de perceber o livro para crianças como um todo e por isso capazes de articular textos: o verbal e o visual.
Acrescenta-se (ou inclui-se)nestas observações as questões específicas da tradução na literatura para crianças que podem ser tema para outros posts.
De pleno acordo!
Olá,
Uma amiga deu-me a direcção do vosso Blog, que bom está, que atraente de ler e que útil para quem se move na área da edição, design e ilustração...
Excelentes palavras, também eu vou guardá-las para as dar a ler a muita gente.
Pela primeira vez ilustrei um livro que está pronto a ser lançado no mercado... Desde há sete meses!... Queriam lançá-lo no Natal (sim, no natal passado...), eu passei dois meses a desenhar e a pintar desenfreadamente para depois o livro ser paginado numa semana (infelizmente, a própria semana do Natal, pelo que a impressão só foi feita depois e depois... Já não valia a pena). Contra o que pedi (estúpida, não tive coragem de exigir), nunca me chamaram para discutir e ver as provas, acertar pormenores, que se vieram a revelar afinal de monta, até fazer novos desenhos num caso ou outro.
Enfim, há-se sair um dia, eu sei, mas tenho muita pena de me ter empenhado tanto e mal conseguir pegar no livro - produto final. O design é muito mau e por nenhuma vez respeitou qualquer das 50 ilustrações feitas. Um profissional que o veja, atira-se para o chão pelos erroa tão básicos e gritantes.
Consolam-me um pouco estas palavras do Daniel, vou guardá-las e pensar que um dia talvez as pessoas aprendam que só um bom trabalho de equipa e a divisão correcta de funções e o respeito integral por elas é garante de um serviço final de qualidade, para quem o presta e para quem o recebe.
Bem hajam, Felicidades
GMT
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